O que dizer a alguém com deficiência?

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Sempre foi característica intrinseca do homem ter admiração/surpresa pelo novo, pelo diferente, pelo estranho. Quando à aldeia chegava um estranho rapidamente os pescoços se reviravam, sobrancelhas interrogativas à procura de saber quem será, a que família pertence. Quanto mais estranho nas vestes, mas retorcidos os pescoços.

Não será de espantar a mesma surpresa perante a deficiência? A forma que varia da norma, seja na aparência ou no comportamento.

As pessoas quando desconhecem do que se trata muitas vezes apontam, perguntam, dizem coisas pouco simpáticas, que deixam o deficiente e familiares desconfortáveis... as pessoas dizem coisas que não deviam dizer. Dizemos todos, não é verdade? Mas será que o dizem realmente por motivos meramente jocosos? Será que é mesmo falta de respeito? Com certeza assim será nalguns casos, mas não concordo que seja a regra.

O que se deve dizer a alguém cujo parente morreu? Os meus sentimentos? A mim parece-me já uma estrutura vocabular desprovida de sentido. Uma muleta social que podemos usar nesse momento em que queremos ser correctos e dizemos uma frase repetida por todos que já não quer dizer nada. Será que não quer mesmo? Será que não quer dizer que queremos apenas expressar o nosso carinho, a nossa empatia, a nossa afabilidade mas não sabemos como fazê-lo-lo. Então, afinal não é assim tão desprovida de sentido, a tal estrutura convencionalizada. 

As crianças pequenas apontam, perguntam o que é, porque é, como é, para que é e outras tantas questões que a minha imaginação já desprovida de simplicidade não consegue formular. Os adultos ensinam. Explicam e dão o exemplo ou pelo menos assim deveria ser para uma efectiva aprendizagem. Não se aponta que é feio, ouvia eu em miúda. Os pais, professores têm de ter tolerância, investir todos os dias para que os filhos cheguem onde pretendem, à assimilação, processamento e integração da nova informação/competência. Mas na diferença ninguém ensina a chegar ao outro. E é bem difícil.

Também eu despertei para todas essas questões durante o meu – contínuo – processo de aprendizagem da convivência com a diferença. Conforme mergulhei na internet à procura de informação, fui esbarrando com textos que sistematizam o que não se deve dizer a um deficiente e seus familiares. Desde o coitadinho, às melhoras, às sugestões de terapias, ao olhar estarrecido, à promessa de nos incluirem nas suas preces e por aí fora, parece uma lista interminável de palavras e acções que as pessoas não podem fazer.

Pus-me a pensar nisto. Remoí, remoí. Mas por que razão não podem as pessoas perguntar o que é que tens? O que é que o teu/seu filho tem? Felizmente tenho tido sorte com as pessoas que me têm aparecido à frente. Como seria se eu não pudesse fazer perguntas e ficasse sem respostas? Qual não seria o tamanho da minha angústia?

Quando o Diogo foi diagnosticado com Charcot-Marie-Tooth eu não sabia o que isso era, nunca tinha visto ninguém. Uma doença rara.  A internet falava em  deformações, falta de músculo. Sabem qual é a sensação de uma mão sem músculo? Eu também não sabia. Sabem como fiquei a saber?

Uma vez, estava no Centro de Reabilitação de Alcoitão a acompanhar o Diogo no seu tratamento quando o fisioteurapeuta me disse que estava um senhor lá fora no corredor com a mesma doença do Diogo e que nos tinha visto passar, reconheceu-nos das nossas acções de sensibilização e pediu para nos conhecer. O meu coração acelerou. Saber como será que o meu filho vai ficar. Era isso que eu queria saber. O que nos espera lá à frente. Para nós este senhor era um portal temporal da informação - valha-nos a ficção científica e o nosso humor. Eu falo pelos cotovelos e não tenho vergonha em esclarecer o que não sei, não tenho medo de arregaçar as mangas e ir atrás do que preciso. Precisava de informação. Posso tocar-lhe nas mãos? Perguntei-lhe com o coração disparado sem saber se o senhor ia levar a mal ou não. Não me leve a mal, mas sabe, além do meu filho, é a primeira pessoa que conheço com CMT. Eu preciso de saber como é, preciso de levar a informação sensorial comigo.

Ainda hoje sorrio ao pensar na minha quase inocente naturalidade ao abordar o senhor e surpreendi-me com a dele, que gentilmente me deixou tocar-lhe nos braços, nas mãos, perceber como fica a pele, se os dedos ficam rígidos ou não. Ainda hoje, já depois de ter conhecido mais pessoas com a mesma doença, sou tão grata à generosidade daquele senhor. Fui de coração cheio para casa nesse dia.

Poder-se-á dizer que há uma empatia que se estabelece automaticamente pela partilha da mesma condição. Não nego. Mas posso dizer que em Alcoitão, enquanto os filhos fazem tratamentos (principalmente os da piscina), os pais conversam entre si sobre terapias, fazem sugestões, perguntam o que tem o seu filho, como aconteceu?

Por que razão não podem os mais saudáveis perguntar? Porque fazem parte de outra equipa? Da equipa da qual também nós queriamos fazer parte? No início também eu sugeria alternativas de tratamento, estratégias. No início também eu me ofendia. Lembro de uma vez numa consulta com uma das médicas do Diogo ela dizer-me – éramos os últimos do dia – que de todas as doenças, se tivesse que escolher uma para os seus filhos escolhia a CMT. Não respondi, mas fui embora tão sentida. Nem imaginam. Pensei para mim que era fácil dizer isso quando a realidade é diferente. As suas filhas são perfeitamente saudáveis, o meu filho não, vai perder faculdades ao longo do tempo. Estamos sempre a aprender. Ainda bem. Ela não estava errada, eu estava. Há efectivamente doenças piores do que a CMT. Cada realidade com a sua verdade. O coração relaxou e a visão clareou, permitindo-me ver a razão dela.

Lembro-me de ficar aborrecida por desejarem as melhoras ao Diogo. As melhoras, as melhoras. É uma doença degenerativa, não tem melhoras, só piora, repetia para mim. Hoje agradeço e sorrio verdadeiramente. Sei que as pessoas não dizem por mal, nem pensam que a doença é degenerativa, que ele vai piorar. Querem ser simpáticas. Aceitemos.

Com o tempo e o coração aberto aprendemos a relativizar tudo, a medir o peso das coisas, o peso da vida. Estou sempre a calibrar a balança. Aprendi a deixar de estar chateada com o que a vida tinha dado ao meu filho, me tinha dado a mim. Tornei-me mais tolerante ao outro e percebi que ninguém quer ferir ninguém. A curiosidade é natural e necessária. Haja educação, naturalmente. Sempre. Mas haja também disponibilidade e afabilidade da parte interessada – deficiente e familiares – para ensinar, sensibilizar. Não se apanham moscas com vinagre, já diz o ditado e é bem verdade. As pessoas querem dizer alguma coisa e não sabem o quê. Na verdade, as palavras interessam mas as acções e atitudes interessam muito mais, as palavras têm o peso que nós lhes damos. Quando alguém diz coitadinho ou lamento a sua perda não está a tentar minimizar ou a desconsiderar ninguém, está a tentar demonstrar empatia perante uma situação que ninguém deseja ou desejou.



A propósito deste tema, deixo-vos com a participação do Diogo no 5 Para a Meia Noite onde o Nilton  - que também é embaixador da Associação Portuguesa de Charcot-Marie-Tooth – lhe faz a mesma pergunta a partir dos 31:24 minutos: ora espreitem.

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