Humanizar a inclusão

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Todos nós, pais de crianças com NEE, sabemos que a inclusão e equidade é extensivamente burocrática, que representa uma guerra em que nos tornamos facilmente personas non gratas devido às constantes exigências a que nos vemos obrigados a fazer cumprir.

Confesso que detesto os pápeis. Desumanizam todo o processo e desviam a atenção dos professores e todos os actores envolvidos daquilo que é o importante: os miúdos. O dia-a-dia deles, as dificuldades/necessidades que precisam ver resolvidas na prática; o entendimento e aceitação de quem são na organização dos afazeres nas suas escolas e outros espaços afins.

Também nesta área, confesso que temos muita sorte. De uma forma ou de outra vamos esbarrando com pessoas. Maravilhosas pessoas que param para me/nos ouvir e ajudar, disponíveis para fazerem o que está ao seu alcance para tornar a vida dos meus filhos mais funcional, mais igual e justa.

Aconteceu primeiro com o Diogo,

Ele estuda num edifício histórico com imensas escadas -  que não vê chegar o dinheiro há tanto prometido pelo M.E. para as obras , quanto mais pensar-se em pedir obras que conteplem as necessidades de um menino deficiente.  Nem me passou pela cabeça levar essa problemática à escola. No entanto, tem maravilhosos colegas que, por vezes, o levam às cavalitas, outras tantas oferecem-se para lhes  levar a mochila, etc.

Quanto ao processo PEI, o Diogo teve a sorte de ter uma Directora de Turma muito competente e humana. Sou muito grata àquela professora. Agilizou sempre a documentação, realizou todas as alterações ao processo que nós fomos solicitando. Um processo dinâmico a responder à dinâmica de uma doença degenerativa. Levo-a para sempre no meu coração. Exagero, disse-me ela no outro dia. Mas não é não. É tão difícil encontrarmos pessoas disponíveis. Acreditem, fazem toda a diferença. Deixo-vos – agora e mais abaixo -  com algumas linhas do livro do Diogo, Baluartes – Episódios de uma vida com banda sonora, publicado pela Vogais, que testemunha esse apoio que temos vivido:



«O teu professor de piano veio falar comigo.»
«Sim, ele disse que o faria. Como é que o processo irá decorrer?»
«Vou ver se ainda esta tarde falo com a directora, no sentido de agilizar todo o processo.»
«Muito obrigado, professora. Agradeço-lhe genuinamente a celeridade e atenção que tem dado a este assunto que, para mim, é tão importante.»
«Não tem de agradecer, Diogo, parte do meu trabalho enquanto directora de turma.»

A relação de professor e aluno vai para além de professore e aluno vai para além de uma série numérica que nos coloca num certo quadrante de qualidade estudantil. É uma interacção humana. Um corpo que olha para nós com atenção e nos guia quando mais precisamos.


Quando a primeira alteração morfológica atingiu as mãos do Diogo, interferindo com o cumprimento dos altos padrões do Conservatório Nacional, veio a primeira seta que atingiu em força o coração do meu filho. Até então a vida cumpria-se sem grande altercação. Valeram-nos os vários planos que já havíamos desenhado para respodermos de imediato, mas valeu-nos também aquele professor de piano, tão amigo do Diogo, tão humano.  Ajudou-nos a pôr o plano em prática, disponibilizou-se para agilizar o processo de mudança de curso de Piano para Composição e comprometeu-se a acompanhar o Diogo,  dando-lhe ainda assim aulas até ao fim do secundário, porque sabia que isso era importante para o Diogo tendo em conta que estudava piano desde os cinco anos e o efeito fisioterapeutico que se fez sentir nas suas mãos. Valeu-nos a Directora da EMCN que autorizou que o Diogo frequentasse oficialmente os dois cursos, valeu-nos o professor de Composição que o recebeu de braços abertos a meio de um ano lectivo e, entretanto, se tornou uma pessoa de importância que perdudará na vida do Diogo.

«Passa-se alguma coisa com os meus dedos, professor. Estão presos, não sei explicar. Eu tento passar desta posição, mas não é fluído.»
«Deixa-me ver. Estica a mão. Estica o polegar. Os dois.»
«Penso que tens aqui progressos da doença na mão. Estás a ver o polegar? Não está a esticar até aos noventa graus», em nenhuma das mãos.»
«Fiquei contente quando entraste  para o sexto grau. No entanto, já te tinha vindo a avisar, a dificuldades iria dar um salto. (...) Enquanto teu professor, enquanto teu amigo, eu sei sempre honesto e realista contigo. Tu tens uma doença degenerativa, que te impossibilita de certa forma o crescimento de massa muscular. Cansas-te mais facilmente, e no futuro poderás vir a ter pouca sensibilidade. E, agora, tens este pequeno avanço. Diz-me uma coisa. Onde é que tu queres chegar? Qual é o teu objectivo»

Este é o seu último ano naquela escola e eu não podia ficar mais grata e feliz pela experiência do meu filho. Juntos conseguimos contornar as pedras que foram aparecendo no sapato.


Com a Matilde temos tido a mesma sorte. No entanto, no caso dela não existe ainda um relatório nem um processo PEI. Contamos com a boa vontade e humanidade de quem a rodeia.

No ano passado, a pequenita começou a ter alguns tiques: a piscar os olhos, a fungar do nariz, a fazer um outro barulho com o nariz – imagino que tenham surgido devido à nossa mudança de casa e à grande novidade que estava por vir: o 1º ciclo. A entrada oficial na escola, apesar de ter ficado no mesmo estabelecimento de ensino e os amigos serem quase os  mesmo do infantário. Mas, ainda assim, a aventura era grande! Além da escola de música! Entretanto, lá foram suavizando, reinando o pisca-pisca e o funga-funga – como lhes chamamos – ora em conjunto, ora alternando-se, ora em ritmo mais suave ou mais acentuado. 

Sendo a Matilde uma menina cumpridora de regras – fora de casa, note-se – não é habitual recebermos  queixas de carácter comportamental, e como ela não demonstra também não é propriamente comum alguém notar seja o que for. Dificilmente ela explodirá fora de casa, implodirá.  Com vista a suavizar algum constragimento ao longo do seu dia-a-dia, quando está mais agitada vou alertando a professora para que possa ir reparando. Em situação de stress, a pequenita fica contraída, calada,  pode cerrar as mãos discretamente, tensionar o corpo, a frustração pode, de facto, instalar-se e tornar o seu dia muito difícil. Desde que os tiques apareceram, em momentos destes, eles podem fazer-se sentir mais marcadamente.

Foi precisamente isso que aconteceu no início deste 2º período lectivo. Talvez devido à grande interrupção das férias do Natal  -  que não deixam de ser uma alteração à rotina, com prendas e emoção à mistura, os primos, a brincadeira sempre com o botão ON no máximo, ou, por outro lado, o regresso às aulas, já tinha saudades dos coleguinhas, das suas brincadeiras – mas, de facto, ela estava On Fire; funga pr’aqui, funga pr’ali... já sabíamos que mais tarde ou mais cedo alguém lhe iria perguntar Estás constipada? Queres ir assoar-te? Também perguntámos quando os tiques surgiram. Também não sabíamos que o eram. 

Era natural e expectável que perguntassem:

Estávamos à espera que terminasse a sua aula de formação musical quando a pequenita saiu a meio dirigindo-se para a casa-de-banho, o olhar trinta e um empinado e rapidamente percebemos. Então, disseram-te para ires assoar o nariz? Acenou que sim. No fim da aula lá fui eu falar com a professora: sou a mãe da menina que saiu a meio da aula para se ir assoar. Não me diga que já pus o pé da poça, disse-me ela a sorrir. Nada disso, professora. Lá lhe expliquei tudo, das dificuldades de integração sensorial, das habilidades engraçadas que também confere, mas também dos tiques que não consegue controlar, apesar de tentar.  Peço muita desculpa. Sabe, estavámos todos à volta do piano a trabalhar e só se ouvia ela a fungar, pensei que estivesse constipada. Com certeza, professora. Não se preocupe, não poderia adivinhar.  
                                   
Foi o humor, a descontração e naturalidade que me surpreenderam. O habitual é receber um olhar de estranhamento, recusa no olhar e restantes trejeitos corporais. Aqui não houve nada disso. Resultado? Naquela aula a pequenita já pode fungar à vontade para nós. Mais uma pequena vitória que sabe a uma dentada de melancia debaixo de uma tarde quente de Verão .

Entretanto, Janeiro a avançar trouxe mais um amiguinho, um novo tique para se juntar à orquestra animada. Desta feita a envolver o ombro. Lá fui eu relembrar a professora do 1º ciclo... que os tiques serão um sinal de que não estará bem e pedi para ter especial atenção caso verificasse que ao longo do dia se manisfestam com mais perseverança. Os dias passaram e numa tarde em que a vou buscar à escola, vejo todos os meninos a sairem da sala bem ordeirados pela professora que está à porta. De repente lá vejo a minha pequenita a sair mas a professora pára-a e fala com ela por uns instantes. Nem uma nem outra sorri. A minha sobrancelha interrogativa arqueia-se em preocupação, mas quando me aproximo a professora explica-me amorosamente que hoje ela esteve com o ombro mais impulsivo e que estava só a confirmar se estava tudo bem, pois a Matilde tinha levado um búzio para apresentar aos colegas mas não tinha havido tempo para o fazer. Houve muitas actividades e o tempo não chegou para tudo. Faz parte. Todos nós temos de lidar com as nossas frustrações e saber arrumá-las.

A burocracia é indispensável para fazer cumprir a inclusão e equidade. Longe de mim pôr em causa a importância dos pápeis, dos processos pelos quais lutamos tanto para garantir a vida própria ou a dos nossos. Mas sou feliz. Sou feliz porque no dia-a-dia dos meus filhos há pessoas e instituições que são sensíveis às necessidades deles, que resolvem as suas questões quotidianas de carácter ora mais concreto ora mais subjectivo. E isso é apenas natural. Assim devia ser a inclusão. A burocracia é tratada por pessoas, as instituições são feitas por pessoas para pessoas. A inclusão é humana!



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